O medo de enxergar a verdade provoca a força da ignorância
“Por vezes as pessoas não querem ouvir a verdade, porque não
desejam que as suas ilusões sejam destruídas. ” Nietzsche.
Permanecer ou sair da caverna? Uma questão que atravessa a
história desde que os homens se compreendem como homens. É melhor desfrutar de
uma realidade fantasiosa, mas confortável ou vivenciar a verdade com toda a sua
dureza?
Viver como sujeito consciente tem um alto preço psicológico.
No próprio mito da caverna, percebemos que os homens tendem a preferir se
contentar com as sombras, do que conhecer o lado de fora, afinal, por mais
falsa que as sombras sejam, elas estão sob a proteção constante das rochas da
caverna, o que significa que ao decidir sair, não há mais volta, pois as
rochas, que o olhar de servo entende como de proteção, para os que despertam,
representam aprisionamento.
O desconhecido magnetiza pelo medo. Dessa forma, na maior parte das vezes, preferimos permanecer onde estamos, por mais adversa que a situação seja, uma vez que o velho goza do benefício do conhecimento e da permanência, o que o torna menos temido do que o novo, o qual ainda não se conhece e não se sabe o que cobrará de nós.
Dito de outro modo, ainda que a situação que vivenciamos
seja adversa, tendemos ao comodismo pelo medo do que ainda não se conhece e,
portanto, pode ser pior do que o já se vivencia.
Esse comodismo ou complacência, entretanto, não se restringe
ao medo do desconhecido, mas também a própria falta de vontade em esforçar-se
para que a condição seja modificada, o que, consequentemente, faz com que os
elementos e institutos aplicados com a finalidade de manutenção desse status
quo sejam bem-sucedidos. Não à toa vivemos na era da servidão voluntária.
No entanto, se vivemos em um mundo “fantasioso”, não é
possível que a alcunha de “era da servidão voluntária” possa ser exposta de
maneira clarividente. É necessário que ela seja transformada, melhor:
ressignificada – para usar um termo de Baudrillard, filósofo que tão bem falou
sobre a nossa Matrix – e, assim, a servidão voluntária se transforma em
admirável mundo novo, lugar em que a técnica, com todo o seu esplendor,
consegue suprir todas as necessidades humanas.
Evidentemente, as revoluções técnicas que aconteceram,
grosso modo nos últimos duzentos anos, trouxeram importantes conquistas,
descobertas e aperfeiçoamentos que tornaram a nossa vida melhor em vários
aspectos. Contudo, a história nos mostra que entre a real capacidade dessas
revoluções e o que dela se extrai (e como se extrai) há um grande abismo. Sendo
assim, a nossa realidade se aproxima muito mais das grandes distopias do século
XX do que de um éden 3D.
Embora essa realidade esteja mais do que clara, o que se
observa, ao contrário do seu questionamento, é o fortalecimento da mesma. Nesse
sentido, o avanço técnico é fundamental, já que quanto mais os sistemas de
controle se desenvolvem, maior é a capacidade de “gerir” a vida dos
subordinados. À vista disso, é interessante perceber que o indivíduo
administrado se acha bem atendido nas suas necessidades, o que hoje, resume-se
em grande parte, ou na totalidade, em consumir.
Com um sistema posto para que os indivíduos se sintam “confortáveis”
ou, no mínimo, em uma potencial condição de satisfazer as suas “necessidades”
e, por conseguinte, sentir-se “confortáveis” e “bem-atendidos”, uma vez que o
consumo (pedra angular da satisfação e do controle) está sempre ao alcance das
mãos (aliás, nem é preciso sair do lugar para entrar na roda de felicidade do
consumo); torna-se extremamente fácil manter a sociedade em ordem.
E como estamos falando de uma sociedade de controle, não é
preciso dizer que existe dura repressão para todos os que fogem à ordem posta,
os quais são vistos como “inadequados” ou como prefere Huxley em sua obra –
“selvagens”. Todavia, como todo bom sistema que evolui, a repressão não ocorre
de modo explícito ou através de chicotes, e sim, de maneira “invisível”, a partir
da “liberdade” que gozamos, posto que a repressão mais perfeita é aquela que
não precisa acontecer, pois é introjetada pelo próprio indivíduo em si mesmo.
Diante de tantas condições favoráveis à escravidão e
dissociadas, portanto, da liberdade, torna-se fácil compreender o porquê da
maior parte de nós preferir continuar na caverna e tomar o ilusório como real.
Da mesma maneira que se compreende o motivo de sermos agentes repressivos
contra os que fogem do sistema, seja os outros, seja nós mesmos. O que implica
dizer que glorificamos a mentira e tomamos por impostores os que se dedicam à
verdade, afinal, como disse Orwell: “Quanto mais a sociedade se distancia da
verdade, mais ela odeia aqueles que a revelam”.
Posto isso, há de se considerar que ao aceitar o modo como a
sociedade se organiza e todos os seus ditames, automaticamente decidimos
permanecer na caverna e contribuir para a manutenção de um sistema de
organização social que por trás de alegria, gozo e satisfação, esconde
exploração, desigualdade e ignorância.
Apesar de não haver condições próprias para que haja um
despertar do indivíduo da sua situação de ignorância, como já exposto, é
imperioso que se entenda que o modo hierárquico da sociedade não se modificará
de cima para baixo, de tal forma que é necessário a cada indivíduo, dentro das
suas oportunidades, tentar buscar pontos de luz que o ajudem a encontrar a
saída da sua ignorância e, por conseguinte, da sua condição escrava.
Se o desconhecido magnetiza pelo medo, é apenas o
conhecimento e a liberdade que nos permitem enfrentá-lo, sabendo que todo
aquele que desperta, sempre apontará para as correntes daqueles que permanecem
presos. Todavia, também devemos ter em mente que muitos, por mais oportunidades
que recebam, irão preferir permanecer na sua ignorância, na caverna, na Matrix
ou qualquer palavra que representa o antônimo da liberdade, pois o estado de
espectador é sempre mais cômodo, já que, ainda que no filme apresentado os
exploradores sejam os protagonistas, sempre há pipoca e refrigerante
suficientes para manter os explorados de boca fechada.
Assim sendo, levantar do cinema, ser um selvagem ou tomar a
pílula vermelha, continuam sendo atos de coragem, espalhados e diminutos, pois
como disse Nietzsche: “Por vezes as pessoas não querem ouvir a verdade, porque
não desejam que as suas ilusões sejam destruídas”. Entretanto, é necessário
destruir as nossas belas e confortáveis ilusões para que possamos ser sujeitos
autônomos e livres, porque é o medo que possuímos da verdade que provoca a força
da ignorância e permite o nosso controle.
Erick Morais
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