O SUTRA DO CORAÇÃO TE MUDARÁ PARA SEMPRE
Karl Brunnhölzl
Penetre o verdadeiro significado do Sutra do coração e nada
será mais como antes, afirma Karl Brunnhölz. O segredo é torná-lo pessoal.
Não há dúvidas de que o Sutra do Coração é frequentemente o
texto mais recitado na tradição do Budismo Mahayana, que continua florescendo
no Japão, Coréia, Vietnã, Tibete, Mongólia, Butão, China, partes da Índia e
Nepal, e, mais recentemente, nas Américas e Europa. Muitas pessoas têm
comentado sobre o que é Sutra do Coração e o que não é; como sendo o coração da
sabedoria, um tratado sobre como as coisas verdadeiramente são, o ponto chave
do Mahayana, uma condensação de todos os Sutras Prajnaparamita (segundo giro da
roda do darma), ou uma explicação condensada da vacuidade. Para melhor
entendermos as palavras do Sutra do Coração, é bom que adentremos o seu
histórico na tradição Budista como também os significados de “prajnaparamita” e
“vacuidade”.
É inegável que a primeira vista o Sutra do Coração nos
pareça uma completa loucura. Quando lemos, não faz sentido algum. Talvez o
começo e o fim tenham algum nexo, mas todo o resto soa como uma sofisticada
forma de nonsense, uma característica básica de todos os Sutras Prajnaparamita.
Se gostarmos da palavra “não”, talvez possamos criar alguma afinidade com o
sutra, visto que nele se fala “não isso”, “não aquilo”. Podemos dizer também
que é um sutra sobre sabedoria, mas sobre louca sabedoria. Quando lemos, parece
maluquice, mas é exatamente daí que parte da sabedoria vem.
O que o Sutra do
Coração(como todos os Sutras Prajnaparamita)
faz é atravessar, desconstruir e
desmontar toda a nossa base conceitual, ideias rígidas, crenças, pontos de
referencia, incluindo o que diz respeito a prática espiritual. Ele opera em um
nível sutil, não apenas em termos de conceitos ou pensamento, mas em termos de
percepção, como vemos o mundo, como escutamos, cheiramos, tocamos, saboreamos,
como nos vemos e reagimos emocionalmente a nós mesmos e aos outros. Esse sutra
puxa o tapete debaixo dos pés e não deixa nada do que possamos pensar intacto.
Isso é a “louca sabedoria”. Já aviso que esse sutra é uma ameaça para a nossa
sanidade samsárica. O que Sangharakshita diz sobre o Sutra do Diamante se
aplica a todos os Sutras Prajnaparamita , incluindo o Sutra do Coração:
“Se insistirmos que a lógica da nossa mente deve ser
satisfeita, estamos perdendo o ponto. O que o Sutra do Diamante está fornecendo
não é um manual detalhado, mas uma série de chacoalhões, vindo de todos os
lados, tentando romper as nossas ilusões mais enraizadas. Não adianta organizar
as partes de forma matemática. O sutra vai ser irritante, entediante e
insatisfatório – e não adianta querer que seja de outra maneira. Se estiver
totalmente claro e organizado, de ponta a ponta, corremos o risco de achar que
alcançamos a Perfeita Sabedoria.”
—Sangharakshita, Wisdom Beyond Words
Outra maneira de enxergar Sutra do Coração é como se
representasse de maneira bem condensada um manual de contemplação. Não é apenas
para ser lido ou recitado, mas a intenção é contemplar o seu significado
detalhadamente. Visto que é o Sutra do Coração, ele carrega a essência do que
chamamos de prajnaparamita, a “perfeição da sabedoria ou insight”. Ele não nos
dá todos os detalhes. É como um breve comentário para contemplar todos os
elementos da nossa existência psicofísica do ponto de vista do que somos agora,
o que nos tornarmos enquanto progredimos no caminho Budista e o que realizamos
(ou não realizamos) no final da caminhada.
Se quisermos ler todos os detalhes,
teremos que buscar a versão longa dos Sutras Prajnaparamita, que consiste em
vinte e uma mil páginas no cânone Budista Tibetano- vinte e uma mil páginas de
“não isso, não aquilo”. O mais longo sutra, em cem mil linhas, consiste em doze
livros grandes. O Sutra do Coração está no fim, só para dizer, e o sutra mais
curto é composto por apenas uma letra, que pessoalmente, é meu favorito. Ele
começa com a introdução comum, “Uma vez Buda estava morando em Rajgir, no Pico
do Abutre” e aí ele disse, “A.”. A história termina com todos os deuses se
regozijando, e é isso. É contado que algumas pessoas entenderam o significado
dos Sutras Prajnaparamita apenas ouvindo ou lendo essa sílaba.
Além de ser um manual de meditação, nós também podemos dizer
que o Sutra do Coração é como um grande koan. Mas não apenas um koan, é similar
às bonecas Russas: dentro da grande, existe uma menor, e dentro da menor tem
outra e assim segue. Da mesma forma, os “nãos” do sutra são pequenos koans.
Cada frase com uma negação é um koan em relação ao que ele se refere, como “nem
olhos”, “nem ouvidos”, e etc. É um convite para contemplar o seu significado.
“Nem olhos”, “nem ouvidos” parece bem tranquilo e simples, mas se analisarmos,
não é tão fácil assim. Em outras palavras, todas as negações presentes no sutra
nos mostram diferentes facetas e perspectivas do principal tema, a vacuidade.
Vacuidade significa que as coisas não existem como parecem existir, mas são
como sonhos e ilusões. Elas não tem uma essência ou existência inerente. Cada
frase nos chama a atenção para isso. A mensagem não parece muito diferente, mas
olhamos ela sempre em relação a coisas diferentes. Qual o significado de dizer
que a forma é vazia? O que significa dizer que até mesmo a sabedoria, natureza
de Buda e o nirvana são vazios?
A partir de um ponto de vista budista comum, poderíamos
dizer que o Sutra do Coração não apenas é uma loucura, mas também é iconoclasta
e herético. Muitas pessoas questionaram os Sutras Prajnaparamita porque eles
põem em cheque os próprios ensinamentos, como as quatro nobres verdades, o
caminho da iluminação e o nirvana.
Esses sutras não questionam apenas a
existência dos nossos pensamentos, emoções, percepções, afirmando que eles não existem
como parecem, mas a regra se aplica também para todos os conceitos fundamentais
das escolas filosóficas – não budistas, budistas, e até mesmo o Mahayana,
tradição a qual os Sutras Prajnaparamita pertencem. Existe outra tradição que
diz: “tudo que ensinamos, apenas esqueça”. É parecido com o que aconteceu
recentemente, quando o dono da Microsoft recomendou aos usuários que
desinstalassem o Windows vista e voltassem ao Windows XP ou ao 7.
Ele fez uma
propaganda contrária ao seu produto. O Sutra do Coração é similar, exceto que
nos mostra no que não acreditar, sem dizer pelo que substituir.
Sobretudo, se não tivermos lido o Sutra do Coração e
pegarmos para ver, da á impressão de que é uma loucura, por que só fica dizendo
“não, não, não”. Se tivermos treinamento no Budismo, também parece um delírio
(talvez até mais) porque o sutra nega tudo o que aprendemos e tentamos
cultivar.
O Sutra do Coração e os outros Sutras Prajnaparamita tratam
sobre diversos temas, mas o ponto fundamental é sobre a ausência de chão ou
falta de solidez em nossa experiência. Eles ensinam que não importa o que
façamos, digamos ou como nos sentimos, não deveríamos acreditar em nada disso.
Não há nada para nos agarrarmos. O sutra nos deixa sem chão o tempo todo e
ainda leva embora todos os nossos brinquedinhos favoritos. Normalmente quando
alguém rouba nossos brinquedos mentais apenas colocamos outros no lugar. Essa é
a razão pela qual os Sutras Prajnaparamita são tão extensos – eles listam todos
os brinquedos que possamos pensar e além, mas a mente continua a procura.
O
ponto fundamental é nos fazer achar um lugar onde possamos parar de procurar,
sem ficar tentando nos agarrar no próximo brinquedo. E aí precisamos sentir
como é esse outro estado mental. Como é vivenciar essa mente de quando não
estamos ávidos por alguma coisa, quando não tentamos nos entreter e quando
nossa mente não busca algo externo, quando não resta para onde ir?
Normalmente pensamos que se um dado fenômeno não é algo,
então deve ser nada, e se é nada¸ então é alguma coisa. Mas a vacuidade é
apenas uma palavra para apontar o fato de que não importa o que dizemos ou
pensamos sobre algo, não irá corresponder corretamente ao que é, porque a nossa
mente dualística se fixa sempre em extremos.
Deste modo, podemos dizer que
vacuidade se trata de como pensar fora da caixa, isso significa, a caixa do
“gosto/não gosto”, de pensamentos dualistas. Contanto que estejamos presos no
dualismo, sempre haverá existência, não existência, permanência, extinção, bom
e ruim. Com essa estrutura de referencia, nunca iremos além, não importa se
somos religiosos, cientistas, budistas, agnósticos, pouco importa.
A vacuidade
nos ensina que precisamos largar o dualismo de vez. A vacuidade aponta para uma
mudança radical de como enxergamos nós e o mundo. Vacuidade não significa
apenas o fim do mundo como o compreendemos, mas em primeiro lugar, que esse
mundo nunca existiu.
Por que o nome “Sutra do Coração”? O sutra tem esse nome
porque ensina o coração do Mahayana , principalmente em termos de visão.
Entretanto, a motivação básica do Mahayana está implicitamente contida no
sutra, na forma de Avalokiteshvara, o grande bodisatva que é a corporificação
da bondade amorosa e compaixão de todos os budas. Na verdade esse é o único
Sutra Prajnaparamita no qual Avalokiteshvara aparece e sendo o principal
personagem. Contudo, o Sutra do Coração ensina a vacuidade através da tônica da
compaixão.
Às vezes é dito que, em certo sentido, a vacuidade é o coração do
Mahayana, mas o coração da vacuidade é a compaixão. As escrituras usam a frase
“vacuidade com o coração de compaixão.” É crucial nunca esquecer isso. A
principal razão da presença de Avalokishtevara é para simbolizar o aspecto
compassivo e enfatizar que não deveríamos nos esquecer disso. Se apenas lermos
todas as negações e nos prendermos no “nenhum caminho”, “não eu” e “não
realização”, pode ficar um pouco confuso ou deprimente e podemos pensar “Por
que estamos fazendo isso?” ou “Por que não estamos fazendo outra coisa?” De
fato, a essência dos ensinamentos do Prajnaparamita e Mahayana é a união entre
vacuidade e compaixão.
Se olharmos os Sutras Prajnaparamita completamente,
veremos que eles explicam os dois aspectos extensivamente. Além de ensinar
sobre a vacuidade, eles também discorrem sobre o caminho detalhadamente, por
exemplo, como cultivar bondade amorosa e compaixão, como fazer certas
meditações, e como progredir no caminho. Eles nem sempre ficam apenas negando,
e às vezes até apresentam os ensinamentos a partir de um ponto de vista mais
positivo. Até mesmo o Sutra do Coração, lá pelo fim, aparece com algumas frases
sem os “nãos”.
Sem desenvolver um coração leve e compaixão, que como agua
alivia nossa rigidez mental, há o perigo de que os ensinamentos sobre a
vacuidade possam fazer o nosso coração ainda mais rígido. Se acharmos que
entendemos a vacuidade, mas a nossa compaixão não aumenta, ou até diminui,
estamos no caminho errado. Portanto, para aqueles que são budistas, é
necessário fazer florescer compaixão e bodhicitta antes de começarmos a estudar,
recitar e contemplar o sutra. Que todos possam se conectar com qualquer rastro
de compaixão que encontrarem em seus corações.
E ainda de outra forma, podemos dizer que o Sutra do Coração
é um convite para relaxar e largar a mão do controle. Nós podemos trocar todas
as negações do sutra, como “nem olhos”, “nem ouvidos” pelos nossos problemas,
por exemplo: “nem depressão”, “nem medo”, “nem desemprego”, “nem crise” e etc.
Isso pode soar meio simplista, mas se fazermos e começarmos a contemplar cada
ponto desses, como depressão, medo, ansiedade e crise econômica, o sutra pode
se tornar uma ferramenta poderosa, talvez até mais do que no modo original.
Normalmente não estamos tão preocupados com nossos ouvidos e se eles existem ou
não, então para contemplarmos o que a vacuidade significa, um dos princípios
básicos dos Sutras Prajnaparamita é tornar esse exame mais pessoal possível.
Não é sobre ficar recitando alguma fórmula estereotipada ou o Sutra do Coração
sem nunca mexermos na raiz do nosso apego, na nossa existência ordinária que
diz respeito a aqueles fenômenos que obviamente nos agarramos, ou que o nosso
ego se agarra. Por exemplo, o Sutra do Coração não fala “nem eu”, “nem casa”,
“nem namorado”, “nem emprego”, “nem dinheiro”, que são coisas as quais normalmente
nos preocupamos. Então, para tornarmos essa prática mais relevante para a nossa
vida, temos que adicionar essas nuances. O Sutra do Coração nos dá um modelo
básico para contemplar a vacuidade, mas a versão longa do sutra penetra em
diversas outras questões, não apenas dizendo “nem olhos”, “nem ouvidos” e etc.
Ele penetra em ilimitadas questões sobre os fenômenos que guiam o nosso
universo pessoal e depois aplica o caminho do Sutra do Coração em cada ponto.
Na versão extensa dos Sutras Prajnaparamita há diversas
histórias sobre ouvintes que obtiveram realizações avançadas ou insights no
caminho espiritual, que se libertaram do samsara e superaram o sofrimento.
Essas pessoas, que são chamadas de “arhats” no Budismo, ouviram os ensinamentos
do Buda sobre vacuidade e tiveram diferentes reações. Alguns pensaram, “Que
loucura, vou embora” e foram. Outros ficaram, mas alguns deles tiveram ataques
do coração, vomitaram sangue e morreram. Parece que não conseguiram sair a
tempo. Esses arhats ficaram tão chocados com o que ouviram que acabaram
morrendo no local. É por isso que alguém me sugeriu que ao invés de chamarmos
de Sutra do Coração, deveríamos mudar para Sutra do Ataque de Coração.
Outro
significado poderia ser que o sutra penetra diretamente no coração do problema,
enquanto ataca impiedosamente todas os fantasias do ego que nos impedem que
acordar para o nosso verdadeiro coração. Em todo caso, aqui ninguém ainda teve
um ataque do coração, o que é uma boa notícia. Mas a novidade ruim, é que
provavelmente ninguém o entendeu também.
Publicado originalmente em Lions Roar | Tradução Mateus
Kratz e colaboração de Tamyres Bertanha.
Karl Brunnhölzl é um professor sênior na comunidade
Nalandabodhi de Dzogchen Ponlop Rinpoche e teve concedido recentemente o título
de khenpo.
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