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domingo, 8 de outubro de 2017

O SUTRA DO CORAÇÃO TE MUDARÁ PARA SEMPRE


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O SUTRA DO CORAÇÃO TE MUDARÁ PARA SEMPRE
Karl Brunnhölzl

Penetre o verdadeiro significado do Sutra do coração e nada será mais como antes, afirma Karl Brunnhölz. O segredo é torná-lo pessoal.

Não há dúvidas de que o Sutra do Coração é frequentemente o texto mais recitado na tradição do Budismo Mahayana, que continua florescendo no Japão, Coréia, Vietnã, Tibete, Mongólia, Butão, China, partes da Índia e Nepal, e, mais recentemente, nas Américas e Europa. Muitas pessoas têm comentado sobre o que é Sutra do Coração e o que não é; como sendo o coração da sabedoria, um tratado sobre como as coisas verdadeiramente são, o ponto chave do Mahayana, uma condensação de todos os Sutras Prajnaparamita (segundo giro da roda do darma), ou uma explicação condensada da vacuidade. Para melhor entendermos as palavras do Sutra do Coração, é bom que adentremos o seu histórico na tradição Budista como também os significados de “prajnaparamita” e “vacuidade”.

É inegável que a primeira vista o Sutra do Coração nos pareça uma completa loucura. Quando lemos, não faz sentido algum. Talvez o começo e o fim tenham algum nexo, mas todo o resto soa como uma sofisticada forma de nonsense, uma característica básica de todos os Sutras Prajnaparamita. Se gostarmos da palavra “não”, talvez possamos criar alguma afinidade com o sutra, visto que nele se fala “não isso”, “não aquilo”. Podemos dizer também que é um sutra sobre sabedoria, mas sobre louca sabedoria. Quando lemos, parece maluquice, mas é exatamente daí que parte da sabedoria vem. 

O que o Sutra do Coração(como todos os Sutras Prajnaparamita)
faz é atravessar, desconstruir e desmontar toda a nossa base conceitual, ideias rígidas, crenças, pontos de referencia, incluindo o que diz respeito a prática espiritual. Ele opera em um nível sutil, não apenas em termos de conceitos ou pensamento, mas em termos de percepção, como vemos o mundo, como escutamos, cheiramos, tocamos, saboreamos, como nos vemos e reagimos emocionalmente a nós mesmos e aos outros. Esse sutra puxa o tapete debaixo dos pés e não deixa nada do que possamos pensar intacto. Isso é a “louca sabedoria”. Já aviso que esse sutra é uma ameaça para a nossa sanidade samsárica. O que Sangharakshita diz sobre o Sutra do Diamante se aplica a todos os Sutras Prajnaparamita , incluindo o Sutra do Coração:

“Se insistirmos que a lógica da nossa mente deve ser satisfeita, estamos perdendo o ponto. O que o Sutra do Diamante está fornecendo não é um manual detalhado, mas uma série de chacoalhões, vindo de todos os lados, tentando romper as nossas ilusões mais enraizadas. Não adianta organizar as partes de forma matemática. O sutra vai ser irritante, entediante e insatisfatório – e não adianta querer que seja de outra maneira. Se estiver totalmente claro e organizado, de ponta a ponta, corremos o risco de achar que alcançamos a Perfeita Sabedoria.”

—Sangharakshita, Wisdom Beyond Words

Outra maneira de enxergar Sutra do Coração é como se representasse de maneira bem condensada um manual de contemplação. Não é apenas para ser lido ou recitado, mas a intenção é contemplar o seu significado detalhadamente. Visto que é o Sutra do Coração, ele carrega a essência do que chamamos de prajnaparamita, a “perfeição da sabedoria ou insight”. Ele não nos dá todos os detalhes. É como um breve comentário para contemplar todos os elementos da nossa existência psicofísica do ponto de vista do que somos agora, o que nos tornarmos enquanto progredimos no caminho Budista e o que realizamos (ou não realizamos) no final da caminhada. 

Se quisermos ler todos os detalhes, teremos que buscar a versão longa dos Sutras Prajnaparamita, que consiste em vinte e uma mil páginas no cânone Budista Tibetano- vinte e uma mil páginas de “não isso, não aquilo”. O mais longo sutra, em cem mil linhas, consiste em doze livros grandes. O Sutra do Coração está no fim, só para dizer, e o sutra mais curto é composto por apenas uma letra, que pessoalmente, é meu favorito. Ele começa com a introdução comum, “Uma vez Buda estava morando em Rajgir, no Pico do Abutre” e aí ele disse, “A.”. A história termina com todos os deuses se regozijando, e é isso. É contado que algumas pessoas entenderam o significado dos Sutras Prajnaparamita apenas ouvindo ou lendo essa sílaba.

Além de ser um manual de meditação, nós também podemos dizer que o Sutra do Coração é como um grande koan. Mas não apenas um koan, é similar às bonecas Russas: dentro da grande, existe uma menor, e dentro da menor tem outra e assim segue. Da mesma forma, os “nãos” do sutra são pequenos koans. Cada frase com uma negação é um koan em relação ao que ele se refere, como “nem olhos”, “nem ouvidos”, e etc. É um convite para contemplar o seu significado. “Nem olhos”, “nem ouvidos” parece bem tranquilo e simples, mas se analisarmos, não é tão fácil assim. Em outras palavras, todas as negações presentes no sutra nos mostram diferentes facetas e perspectivas do principal tema, a vacuidade. Vacuidade significa que as coisas não existem como parecem existir, mas são como sonhos e ilusões. Elas não tem uma essência ou existência inerente. Cada frase nos chama a atenção para isso. A mensagem não parece muito diferente, mas olhamos ela sempre em relação a coisas diferentes. Qual o significado de dizer que a forma é vazia? O que significa dizer que até mesmo a sabedoria, natureza de Buda e o nirvana são vazios?

A partir de um ponto de vista budista comum, poderíamos dizer que o Sutra do Coração não apenas é uma loucura, mas também é iconoclasta e herético. Muitas pessoas questionaram os Sutras Prajnaparamita porque eles põem em cheque os próprios ensinamentos, como as quatro nobres verdades, o caminho da iluminação e o nirvana. 

Esses sutras não questionam apenas a existência dos nossos pensamentos, emoções, percepções, afirmando que eles não existem como parecem, mas a regra se aplica também para todos os conceitos fundamentais das escolas filosóficas – não budistas, budistas, e até mesmo o Mahayana, tradição a qual os Sutras Prajnaparamita pertencem. Existe outra tradição que diz: “tudo que ensinamos, apenas esqueça”. É parecido com o que aconteceu recentemente, quando o dono da Microsoft recomendou aos usuários que desinstalassem o Windows vista e voltassem ao Windows XP ou ao 7. 

Ele fez uma propaganda contrária ao seu produto. O Sutra do Coração é similar, exceto que nos mostra no que não acreditar, sem dizer pelo que substituir.

Sobretudo, se não tivermos lido o Sutra do Coração e pegarmos para ver, da á impressão de que é uma loucura, por que só fica dizendo “não, não, não”. Se tivermos treinamento no Budismo, também parece um delírio (talvez até mais) porque o sutra nega tudo o que aprendemos e tentamos cultivar.

O Sutra do Coração e os outros Sutras Prajnaparamita tratam sobre diversos temas, mas o ponto fundamental é sobre a ausência de chão ou falta de solidez em nossa experiência. Eles ensinam que não importa o que façamos, digamos ou como nos sentimos, não deveríamos acreditar em nada disso. Não há nada para nos agarrarmos. O sutra nos deixa sem chão o tempo todo e ainda leva embora todos os nossos brinquedinhos favoritos. Normalmente quando alguém rouba nossos brinquedos mentais apenas colocamos outros no lugar. Essa é a razão pela qual os Sutras Prajnaparamita são tão extensos – eles listam todos os brinquedos que possamos pensar e além, mas a mente continua a procura. 

O ponto fundamental é nos fazer achar um lugar onde possamos parar de procurar, sem ficar tentando nos agarrar no próximo brinquedo. E aí precisamos sentir como é esse outro estado mental. Como é vivenciar essa mente de quando não estamos ávidos por alguma coisa, quando não tentamos nos entreter e quando nossa mente não busca algo externo, quando não resta para onde ir?

Normalmente pensamos que se um dado fenômeno não é algo, então deve ser nada, e se é nada¸ então é alguma coisa. Mas a vacuidade é apenas uma palavra para apontar o fato de que não importa o que dizemos ou pensamos sobre algo, não irá corresponder corretamente ao que é, porque a nossa mente dualística se fixa sempre em extremos. 

Deste modo, podemos dizer que vacuidade se trata de como pensar fora da caixa, isso significa, a caixa do “gosto/não gosto”, de pensamentos dualistas. Contanto que estejamos presos no dualismo, sempre haverá existência, não existência, permanência, extinção, bom e ruim. Com essa estrutura de referencia, nunca iremos além, não importa se somos religiosos, cientistas, budistas, agnósticos, pouco importa. 

A vacuidade nos ensina que precisamos largar o dualismo de vez. A vacuidade aponta para uma mudança radical de como enxergamos nós e o mundo. Vacuidade não significa apenas o fim do mundo como o compreendemos, mas em primeiro lugar, que esse mundo nunca existiu.

Por que o nome “Sutra do Coração”? O sutra tem esse nome porque ensina o coração do Mahayana , principalmente em termos de visão. Entretanto, a motivação básica do Mahayana está implicitamente contida no sutra, na forma de Avalokiteshvara, o grande bodisatva que é a corporificação da bondade amorosa e compaixão de todos os budas. Na verdade esse é o único Sutra Prajnaparamita no qual Avalokiteshvara aparece e sendo o principal personagem. Contudo, o Sutra do Coração ensina a vacuidade através da tônica da compaixão. 

Às vezes é dito que, em certo sentido, a vacuidade é o coração do Mahayana, mas o coração da vacuidade é a compaixão. As escrituras usam a frase “vacuidade com o coração de compaixão.” É crucial nunca esquecer isso. A principal razão da presença de Avalokishtevara é para simbolizar o aspecto compassivo e enfatizar que não deveríamos nos esquecer disso. Se apenas lermos todas as negações e nos prendermos no “nenhum caminho”, “não eu” e “não realização”, pode ficar um pouco confuso ou deprimente e podemos pensar “Por que estamos fazendo isso?” ou “Por que não estamos fazendo outra coisa?” De fato, a essência dos ensinamentos do Prajnaparamita e Mahayana é a união entre vacuidade e compaixão. 

Se olharmos os Sutras Prajnaparamita completamente, veremos que eles explicam os dois aspectos extensivamente. Além de ensinar sobre a vacuidade, eles também discorrem sobre o caminho detalhadamente, por exemplo, como cultivar bondade amorosa e compaixão, como fazer certas meditações, e como progredir no caminho. Eles nem sempre ficam apenas negando, e às vezes até apresentam os ensinamentos a partir de um ponto de vista mais positivo. Até mesmo o Sutra do Coração, lá pelo fim, aparece com algumas frases sem os “nãos”.

Sem desenvolver um coração leve e compaixão, que como agua alivia nossa rigidez mental, há o perigo de que os ensinamentos sobre a vacuidade possam fazer o nosso coração ainda mais rígido. Se acharmos que entendemos a vacuidade, mas a nossa compaixão não aumenta, ou até diminui, estamos no caminho errado. Portanto, para aqueles que são budistas, é necessário fazer florescer compaixão e bodhicitta antes de começarmos a estudar, recitar e contemplar o sutra. Que todos possam se conectar com qualquer rastro de compaixão que encontrarem em seus corações.

E ainda de outra forma, podemos dizer que o Sutra do Coração é um convite para relaxar e largar a mão do controle. Nós podemos trocar todas as negações do sutra, como “nem olhos”, “nem ouvidos” pelos nossos problemas, por exemplo: “nem depressão”, “nem medo”, “nem desemprego”, “nem crise” e etc. Isso pode soar meio simplista, mas se fazermos e começarmos a contemplar cada ponto desses, como depressão, medo, ansiedade e crise econômica, o sutra pode se tornar uma ferramenta poderosa, talvez até mais do que no modo original. Normalmente não estamos tão preocupados com nossos ouvidos e se eles existem ou não, então para contemplarmos o que a vacuidade significa, um dos princípios básicos dos Sutras Prajnaparamita é tornar esse exame mais pessoal possível. 

Não é sobre ficar recitando alguma fórmula estereotipada ou o Sutra do Coração sem nunca mexermos na raiz do nosso apego, na nossa existência ordinária que diz respeito a aqueles fenômenos que obviamente nos agarramos, ou que o nosso ego se agarra. Por exemplo, o Sutra do Coração não fala “nem eu”, “nem casa”, “nem namorado”, “nem emprego”, “nem dinheiro”, que são coisas as quais normalmente nos preocupamos. Então, para tornarmos essa prática mais relevante para a nossa vida, temos que adicionar essas nuances. O Sutra do Coração nos dá um modelo básico para contemplar a vacuidade, mas a versão longa do sutra penetra em diversas outras questões, não apenas dizendo “nem olhos”, “nem ouvidos” e etc. Ele penetra em ilimitadas questões sobre os fenômenos que guiam o nosso universo pessoal e depois aplica o caminho do Sutra do Coração em cada ponto.

Na versão extensa dos Sutras Prajnaparamita há diversas histórias sobre ouvintes que obtiveram realizações avançadas ou insights no caminho espiritual, que se libertaram do samsara e superaram o sofrimento. Essas pessoas, que são chamadas de “arhats” no Budismo, ouviram os ensinamentos do Buda sobre vacuidade e tiveram diferentes reações. Alguns pensaram, “Que loucura, vou embora” e foram. Outros ficaram, mas alguns deles tiveram ataques do coração, vomitaram sangue e morreram. Parece que não conseguiram sair a tempo. Esses arhats ficaram tão chocados com o que ouviram que acabaram morrendo no local. É por isso que alguém me sugeriu que ao invés de chamarmos de Sutra do Coração, deveríamos mudar para Sutra do Ataque de Coração.

Outro significado poderia ser que o sutra penetra diretamente no coração do problema, enquanto ataca impiedosamente todas os fantasias do ego que nos impedem que acordar para o nosso verdadeiro coração. Em todo caso, aqui ninguém ainda teve um ataque do coração, o que é uma boa notícia. Mas a novidade ruim, é que provavelmente ninguém o entendeu também.

Publicado originalmente em Lions Roar | Tradução Mateus Kratz e colaboração de Tamyres Bertanha.


Karl Brunnhölzl é um professor sênior na comunidade Nalandabodhi de Dzogchen Ponlop Rinpoche e teve concedido recentemente o título de khenpo.

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