O Amor e Lucidez nos Relacionamentos
By Jigme
Wangchuck (Leonardo Ota)
Seria possível tornar um relacionamento amoroso caminho
espiritual?
Cada ser humano concebe sua existência através de uma cadeia
inter-dependente de relações com outros seres. Somos quem somos por um processo
de relação com nossos pais, filhos, parentes, amigos, colegas de trabalho e
assim por diante. Somos seres de relação. A visão de Buddha nomeada Pratitya
Samutpada traz a noção literal de “originação através de uma relação
co-dependente.” O conceito de eu sou parece estar separado dos outros, porém,
quando investigado se revela exatamente como Buddha percebeu – um processo de
co-dependência e relação contextual aromatizada por pré-disposições mentais.
Nossa vida é uma reprodução ‘cinematográfica’ de um drama,
romance, suspense, comédia e ação, surgida a partir dos mais variados e
inacreditáveis processos de relações conscientes e inconscientes. Entre as relações
mais favoráveis para uma oportunidade de rápida transformação interior estão os
relacionamentos amorosos ou em família.
Todos buscamos ser felizes. Portanto, vamos também em busca
de felicidade ao iniciar um relacionamento. Porém, nossa felicidade nas
relações amorosas encontra-se na maioria dos casos basicamente na dependência
de sensações de prazer e desprazer.
Dizemos ‘eu te amo’ mas o fato é que amamos a nós mesmos,
amamos as sensações produzidas pelo outro em nosso psicofísico. Não importa se
o outro esta feliz ou não e se há uma razão para ele estar agindo de
determinada forma. Eu deixo de amá-lo porque ele deixou de me fazer feliz. Tudo
bem, acontece, é natural, buscamos por felicidade individual também. Porém, isso
ainda não é verdadeiro amor. O amor pleno, todo abrangente, ama genuinamente o
outro e a si próprio simultâneamente.
Nosso coração, sentimentos e pensamentos são dirigidos e
modulados por energias de hábito, impressões mentais que controlam nossa vida –
Eu gosto quando você me trata assim. Não gosto quando você age de tal forma.
Nosso bem-estar é dirigido por estes registros internos, modulados por
pré-concepções auto-centradas, tendências egoístas que são cegas para o outro e
percebem somente sensações boas ou ruins. Chega a ser vergonhoso constatar
nosso auto-centramento. Estamos grande parte de nosso tempo idolatrando a si
próprios, sendo escravos de nossas sensações e conceitos.
Entretanto, há um segredo aí. O auto-centramento revela uma
capacidade de conhecer, nutrir e proteger um bem-estar quando posicionado a
partir de um referencial que percebe as coisas de forma mais lúcida, sensata,
coerente. Descobrimos que nosso corpo, energia e pensamentos são dirigidos a
partir de um ângulo ou referencial interno. Podemos ampliar nosso referencial e
nos encontrarmos naturalmente mais próximos dos princípios de como realmente a
vida, incluindo o universo externo como também o interno, são regidos.
Verdadeira felicidade nas relações será possível se
operarmos a partir de um software interno mais amplo, um universo cognitivo que
vai além de uma visão auto-centrada e estreita. Seremos mais felizes com nosso
companheiro(a) na medida que desenvolvermos mais e mais liberdade frente a
estas modulações habituais que dirigem nossa energia e formos capazes de olhar
a vida a partir de uma perspectiva mais inclusiva, que abrange os pensamentos e
sentimentos do outro.
Dizemos: “Ok, entendo. Faz sentido. Mas e aí, como faço?”
O truque é o amor genuíno, a bondade amorosa, maitri em
sânscrito. O Amor vê, percebe, discerne. É sensível, acolhedor, despreocupado
com resultados. É paciente, gentil e aberto. Se nossa atitude estiver fundada
no amor genuíno, cada instante de nossa vida será pleno, consciente,
desconstraído e apreciativo.
Quando reconhecemos o outro como parte de quem somos, como
elemento atuante na construção deste personagem surgido através de relações
contextuais, reconheceremos que nosso bem-estar e felicidade esta diretamente
dependente do bem-estar e felicidade de nosso companheiro (a) como também de
todos os outros com quem nos relacionamos, direta ou indiretamente.
Nosso problema, muitas vezes, é o querer estar sob controle.
Cegos perante a verdade de que o bem-estar genuíno surge da simplicidade, da
abertura e curiosidade inteligente diante o movimento natural do universo e dos
seres, nos encontramos constantemente insatisfeitos, movidos por medos, dúvidas
e expectativas. Imperceptíveis aos pensamentos e sentimentos do outro, também
sofremos. Nos sentimos inseguros por não ter controle sobre esses elementos.
Verdadeiro amor é transcendente, amplo, leve, aberto e incondicional. Nos
direciona a ir além da obdiência a impulsos auto-centrados. Eu olho para o
outro não com as lentes que buscam nele uma fonte de felicidade mas com a
perceção mais ampla que o inclui, que compreende igualmente sua busca por
bem-estar.
Como budistas reconhecemos que uma independência verdadeira
frente a nossos automatismos cognitivos e emocionais só irá aflorar quando
desenvolvermos um conhecimento profundo sobre a operação e natureza de nossa
mente. Estamos aqui para aprender e amadurecer. O objetivo do caminho
espiritual é nos tornar verdadeiramente adultos. Este conhecimento de nosso
universo interior e a gradual segurança que surge a partir de nossa
familiarização com ele faz brotar um destemor saudável, lúcido e aberto. Não
teremos mais medo de errar nem nos moveremos por expectativas de acertar.
Estamos simples e honestamente abertos a viver, experimentar, conhecer e
aprender com o coração livre e leve.
Amor genuíno pode aflorar e se desenvolver de várias
maneiras. Uma forma é desenvolvida quando baseamos nosso amor através da
percepção da impermanência e transitoriedade de todas as coisas – o movimento
natural da vida e do viver. Disto surge uma disposição apreciativa de si, do
outro, do momento presente, das condições e causas favoráveis. Surge energia e
interesse em aprender a cada instante. Interesse em aproveitar o máximo cada
acontecimento, cada situação, cada olhar, toque e palavra. Nossa natureza é
dotada da capacidade de experimentar o mundo, de conhecer, compreender,
apreciar e se apaixonar.
O amor compreende o outro. Esta ligado ao que temos a
oferecer e não ao que temos a ganhar. É dito que ao conhecer e se desenvolver
maestria dos potenciais naturais de nossa mente passamos a ter muito mais a
oferecer aos outros e ao mundo. Há riqueza em um relacionamento que surge
quando há confiança e regozijo nas coisas boas que se tem a compartilhar.
Verdadeiro amor nos concede o potencial e interesse de
explorarmos as qualidades e potenciais de nosso parceiro(a), mesmo que este
potencial revele suas partes mais vulneráveis. Como o amor não é condicional,
esta livre do interesse próprio e inclue o mundo do outro, as partes
vulneráveis se tornam caminho de transformação, de aprendizado e evolução
mútua. Esse olhar magnetiza nosso companheiro(a), atrai positivamente, guia e
conduz. Nos direciona ao verdadeiro amor, a relações mais duradouras, estáveis e
genuínas. A bondade amorosa nos capacita a acolher carinhosamente nosso amado
(a), a nutrí-lo oferecendo suporte para seu desenvolvimento, a magnetizá-lo e
guiá-lo a direções positivas, a protegê-lo e orientá-lo e a partilhar da
verdade das coisas e estar aberto a ouvir também sua verdade.
O amor traz consigo o desejo sincero e incondicional que se
tem pelo bem-estar do outro, livre de interesses auto-centrados. Passamos a não
mais fugir baseados em nossos gostos e não-gostos, mas a ter uma atitude
espiritualmente madura que entende as causas e condições que modulam nossos
sentimentos como também do nosso parceiro(a). Nos posicionamos lúcidos e hábeis
a transformar nossas relações através deste discernimento e da liberdade que
surge dele. Estamos mais sensíveis e percetíveis as causas que produzem
bem-estar e as condições que geram mal-estar. Quando um relacionamento é
baseado nisto surge confiança e abertura. A raiva, o ciúmes, carências e
decepções diversas não encontram espaço e suporte, ou seja, condições para
surgirem. Cada ato, cada olhar, cada palavra, encontra-se impregnada de amor e
compreensão. Para o surgimento disto é necessário abdicar de idéias fixas sobre
o outro, sobre si e sobre a realidade circundante. É necessário espaço,
respiração e flexibilidade mental. É preciso cultivar abertura, aceitação e
empatia no coração.
Nos relacionamento encontraremos o potencial de ampliar
nossas qualidades e potenciais humanos. Será revelado a nós nossos bloqueios e
resistências que se apresentarão como oportunidades mágicas de transcendência e
evolução. Surge uma base mágica e propícia para realizarmos a natureza e
operação de nossas mentes como também expandir seus potenciais e qualidades
naturais.
É importante desenvolvermos a inteligência de nos afastar um
pouco quando um relacionamento se mostre, depois de muitas e longas tentativas,
insalubre. Porém, é necessário discernir também nossa incapacidade naquele
momento de magnetizar e dirigir a relação numa direção positiva, de semear as
causas e condições que gerariam um bom relacionamento. Há momentos que nos
encontraremos destituídos de habilidades e estabilidade interna para reverter
uma determinada situação e, portanto, melhor nos afastarmos um pouco para
retomar nosso eixo, nosso equilíbrio e bom senso.
Haverão outros momentos que estaremos preenchidos de amor e
de uma motivação de transformar o que se apresentar em caminho espiritual.
Pegaremos na mão de nosso parceiro e seremos sinceros: “Esta situação foi
surgindo e não percebemos. Me ajude a descobrir os elementos que levaram a isso
e a explorar alternativas que possam modificá-la.” Juntos, com amor, paciência,
motivação e discernimento os obstáculos se tornarão em caminho de
transformação.
Em outros estágios nos encontraremos vivendo oportunidades
mais raras onde a própria situação de desconforto se manifestará como um espelho
da mente e de seus potenciais, de sua capacidade de se colocar em referênciais
estreitos e de se expandir em direção a perspectivas muito amplas que
inexplicavelmente se cegam a detalhes importantes. Reconheceremos com humildade
e certeza que nada é fixo, sólido e que a mente é flexível, luminosa e
incrivelmente criativa. Saberemos que nossa natureza é bondosa, desobstruída e
realizadora. Que há uma dança natural onde a presença da carência desperta o
cuidado. Onde a presença do desejo desperta o poder natural de preenchê-lo e
realizá-lo. Onde a manifestação da raiva pede por espaço, por acolhimento e
escuta. A causalidade que opera em nossas relações passa a ser apreciada em sua
beleza, leveza e potencial, como uma dança espontâneamente mágica. E que nos
tornaremos senhores desta dança na medida que dançarmos conforme a música do
fluir natural e real da vida.
Jigme Wangchuck (Leonardo Ota)
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